Bottom Line
Nas Diretrizes Brasileiras para o Rastreamento do Câncer do Colo do Útero o método recomendado é o exame citopatológico. Os dois primeiros exames devem ser realizados com intervalo anual e, se ambos os resultados forem negativos, os próximos devem ser realizados a cada três anos. O início da coleta deve ser aos 25 anos para evitar resultados falso-positivos, procedimentos adicionais e riscos desnecessários. Os exames periódicos devem seguir até os 64 anos e, naquelas mulheres sem história prévia de doença neoplásica pré-invasiva, interrompidos quando tiverem pelo menos dois exames negativos consecutivos nos últimos cinco anos. Embora as recomendações de periodicidade trienal e de faixa etária para início do rastreamento sejam antigas no país, ainda há dificuldades de adesão tanto na saúde suplementar quanto no SUS. A mudança do atual rastreamento oportunístico para o modelo de base populacional pode viabilizar a migração da citologia para novas tecnologias de rastreamento com testes de HPV, permitindo aumentar o intervalo de triagem de trienal para quinquenal e aumentar a faixa etária de início de 25 para 30 anos. Aspectos como aceitabilidade, adesão, organização da rede, avaliação das opções de triagem pós-rastreio e da custo-efetividade das mudanças são questões que precisam ser avaliadas para incorporação de novas tecnologias no sistema de saúde.
Arn Migowski é Chefe da Divisão de Detecção Precoce de Câncer e Apoio à Organização de Rede, Instituto Nacional de Câncer (INCA)
Resumo
O rastreamento do câncer do colo do útero e de suas lesões precursoras possui um papel central na estratégia de eliminação do câncer do colo do útero como problema de saúde pública. O avanço do rastreamento do câncer do colo do útero no Brasil nos próximos anos depende da garantia da qualidade da citologia; da diminuição das barreiras de acesso, prioritariamente para mulheres que habitualmente não são rastreadas; da diminuição do sobrerrastreamento fora da população-alvo e periodicidade recomendadas e do aprimoramento do seguimento de mulheres com resultados alterados e do tratamento dos casos confirmados, por meio da adesão às diretrizes vigentes. A mudança para o modelo de rastreamento de base populacional também tornará viável a migração para novas tecnologias de rastreamento. Potenciais vantagem de rastreamento com testes de HPV no contexto do rastreamento organizado incluem a possibilidade de aumentar o intervalo entre os testes de rastreamento de trienal para quinquenal e aumentar a faixa etária de início de 25 para 30 anos. Aspectos como aceitabilidade, adesão, organização da rede, avaliação das opções de triagem pós-rastreio e da custo-efetividade das mudanças no programa são algumas das questões contexto-dependentes essenciais que precisam ser avaliadas para incorporação de novas tecnologias no sistema de saúde.
Palavras-chave: Detecção Precoce de Câncer; Programas de Rastreamento; Neoplasias do Colo do Útero; Testes de DNA para Papilomavírus Humano; Teste de Papanicolaou
Introdução
Em novembro de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) publicou sua proposta de estratégia global para acelerar a eliminação do câncer do colo do útero como problema de saúde pública1. A OMS propõe a queda de incidência para o patamar de até 4 por 100.000 mulheres-ano, por meio do alcance das seguintes metas a serem cumpridas pelos países até 2030: 1) 90% das meninas totalmente vacinadas contra o HPV aos 15 anos; 2) 70% das mulheres rastreadas com um teste de alto desempenho aos 35 anos de idade e novamente aos 45 anos de idade; 3) 90% das mulheres identificadas com doença cervical (lesões precursoras e câncer) recebendo tratamento.
Conforme pode ser observado, o rastreamento do câncer do colo do útero e de suas lesões precursoras possui um papel central na referida estratégia. O objetivo do presente artigo é discutir os principais desafios e sobre como avançar no rastreamento do câncer do colo do útero no Brasil nos próximos anos.
Desenvolvimento/Discussão
Nas Diretrizes Brasileiras para o Rastreamento do Câncer do Colo do Útero o método recomendado é o exame citopatológico. Os dois primeiros exames devem ser realizados com intervalo anual e, se ambos os resultados forem negativos, os próximos devem ser realizados a cada três anos. O início da coleta deve ser aos 25 anos para as mulheres que já tiveram ou têm atividade sexual. Antes dos 25 anos prevalecem as infecções por HPV e as lesões de baixo grau, que regredirão espontaneamente quase sempre, gerando muito resultados falso-positivos, procedimentos adicionais e riscos desnecessários. Os exames periódicos devem seguir até os 64 anos e, naquelas mulheres sem história prévia de doença neoplásica pré-invasiva, interrompidos quando tiverem pelo menos dois exames negativos consecutivos nos últimos cinco anos2.
Embora as recomendações de periodicidade trienal e de faixa etária para início do rastreamento sejam antigas no país, ainda há dificuldades de adesão tanto na saúde suplementar quanto no SUS, com expressivo rastreamento em mulheres jovens fora da população-alvo e de rastreamento com periodicidade anual3. Esse sobrerrastreamento em geral resulta na detecção de lesões de baixo grau que involuiriam espontaneamente4 e, além de não trazer benefícios adicionais, incorre em riscos inerentes à realização de procedimentos desnecessários e com risco de efeitos adversos5. Ademais, esse tipo de rastreamento predominante no Brasil é pouco eficiente, desperdiçando recursos sobrerrastreando sempre as mesmas mulheres, enquanto existem subgrupos populacionais importantes e com risco mais elevado que nunca rastrearam ou que o fizeram há mais de três anos3. Essa prática vai na contramão do que vem sendo preconizado internacionalmente, que é um rastreamento cada vez mais eficiente, buscando garantir a adesão e a cobertura, com redução dos episódios de rastreamento ao longa da vida6.
Uma das principais causas desse cenário é o tipo de organização do rastreamento no país, denominado oportunístico, onde os testes são solicitados por ocasião de visitas aos consultórios médicos, sem uma convocação ativa de cada mulher da população-alvo3. O mesmo cenário de dificuldades de adesão também é observado no rastreamento do câncer de mama e muitas das causas são comuns a ambos7,8. O aperfeiçoamento da organização do rastreamento por si só, com migração para o modelo de rastreamento populacional, apresenta um expressivo potencial de impacto na mortalidade, como mostra a experiência internacional9.
Apesar de queda da mortalidade por câncer de colo do útero nas capitais nas últimas décadas, ainda existem dificuldade importantes, em especial na região Norte10. Além dos problemas de adesão às diretrizes existem outros desafios a serem superados, incluindo a qualidade da coleta e a garantia da qualidade do exame citopatológico e de sua reprodutibilidade, cuja solução passa pela garantia dos monitoramentos internos e externos da qualidade, e a reversão da tendência de pulverização de exames em pequenos laboratórios11.
Outro desafio a ser superado, para que qualquer rastreamento seja efetivo é a melhora do seguimento das mulheres com exames alterados, garantindo o tratamento das lesões de alto grau com estruturação do nível secundário e oferta de Exérese da Zona de Transformação (EZT) em nível ambulatorial12.
À medida que coortes de meninas vacinadas contra o HPV atingirem a idade preconizada para o início do rastreamento ocorrerá impacto no desempenho do exame citopatológico, em virtude da menor prevalência de lesões precursoras e, consequentemente, da diminuição do valor preditivo positivo13. Nesse contexto é recomendável a utilização de testes com maior sensibilidade, como os testes moleculares para detecção de HPV14.
Adicionalmente os testes de HPV trazem vantagens potenciais sobre a citologia no rastreamento. Fora o fato de que a citologia requer treinamento importante para garantir sua qualidade e reprodutibilidade, o uso dos testes de HPV, além de permitir a automação, poderia - pelo alto valor preditivo negativo e alta sensibilidade - aumentar o intervalo entre os testes de rastreamento de trienal para quinquenal e aumentar a faixa etária de início de 25 para 30 anos15. Essa importante vantagem do rastreamento com os testes de HPV depende da organização do rastreamento, evitando que a prática arraigada no país de rastreamento anual de mulheres jovens seja perpetuada16. Caso contrário, não só essa potencial vantagem tornar-se-ia inócua, como o problema atual de sobrerrastreamento seria agravado.
Os testes moleculares de HPV clinicamente validados usam métodos de amplificação, subdivididos em amplificação de sinal (signal amplified) e amplificação de alvo (target amplified). As principais técnicas representativas de cada categoria são a captura híbrida 2 (HC2) e as reações em cadeia da polimerase (PCR), respectivamente17. Os testes de HPV oncogênicos baseados na técnica de PCR em tempo real disponíveis são aproximadamente comparáveis em relação à sensibilidade para detecção de lesões precursoras e ao valor preditivo negativo17, sendo que os mais recentes incluem genotipagem isolada ou agrupada, permitindo estratificação de risco18, pois a história natural da infecção pelo HPV aponta para variação substancial no desenvolvimento de lesões precursoras e câncer relacionados a diferentes tipos de HPV oncogênicos4. A possibilidade de genotipagem e a maior sensibilidade para detecção de lesões precursoras em amostras autocoletadas representam vantagens inerentes aos testes de HPV baseados em PCR quando comparados aos testes baseados na amplificação do sinal19.
Mesmo com esses novos testes que visam identificar tipos de HPV oncogênicos, o quantitativo de mulheres com teste de rastreamento positivo aumentará expressivamente em relação ao rastreamento citológico, aumentando a referência para exames adicionais de confirmação diagnóstica, que já é um nó crítico do sistema de saúde12. Para evitar esse problema é essencial que testes de HPV positivos sejam seguidos por testes de triagem. As opções mais discutidas atualmente incluem a própria citologia convencional, a dupla marcação (dual stain) imunocitoquímica para p16/Ki67 em amostras de citologia em meio líquido e a genotipagem20,21. A metilação e a avaliação visual automatizada são métodos ainda experimentais, mas auspiciosos22,23.
Outro benefício do rastreamento com testes de HPV é a alternativa de autocoleta, possibilitando o rastreamento fora de unidades de saúde, em residências e locais de trabalho, dispensando a necessidade de exame especular e minimizando a resistência cultural em ser examinada por profissional de saúde, com grande potencial de redução de barreiras de acesso, principalmente de mulheres nunca rastreadas ou que o fizeram há mais tempo do que recomendado, na dependência do método de rastreamento utilizado19. Como a autocoleta não permite citologia reflexa, sua adoção também refletirá no método de triagem a ser utilizado.
Ademais, a incorporação de testes de HPV para o rastreamento também demanda intervenções educativas para que as mulheres e os profissionais de saúde entendam o significado de um teste de HPV positivo, evitando repercussões indesejadas, inclusive sobrediagnósticos e sobretratamentos, tendo em vista a elevada prevalência de HPV na população e que a maioria não desenvolverá lesões de alto grau ou câncer. Uma revisão sistemática com meta-análise publicada em 2020 estimou a prevalência de infecção cervical por HPV no Brasil em 25,41%24.
Apesar dos testes para detecção de HPV ainda não estarem incorporados no SUS foram publicadas recomendações com o objetivo de orientar os profissionais que trabalham em cenários nos quais os testes estão disponíveis, para que possam utilizá-los de acordo com as melhores práticas e embasados pelas evidências científicas mais robustas25. Em paralelo vêm sendo estimuladas e conduzidas iniciativas investigando a mudança para a abordagem molecular no rastreamento do câncer do colo do útero no contexto brasileiro26,27,28,29,30. Aspectos como aceitabilidade, adesão, logística, organização da rede, avaliação das opções de triagem pós-rastreio, da custo-efetividade das mudanças no programa e seu respectivo impacto orçamentário, são algumas das questões contexto-dependentes essenciais que precisam ser avaliadas no país.
Conclusão
O avanço do rastreamento do câncer do colo do útero no país depende da garantia da qualidade da citologia; da diminuição das barreiras de acesso, prioritariamente para mulheres que habitualmente não são rastreadas; da diminuição do sobrerrastreamento e do aprimoramento do seguimento de mulheres com resultados alterados e do tratamento dos casos confirmados, por meio da adesão às diretrizes vigentes. A mudança para o modelo de rastreamento de base populacional também tornará viável a migração para novas tecnologias de rastreamento e triagem.
Autores: Arn Migowski1 e Flávia de Miranda Corrêa2
1 - DrPH. Chefe da Divisão de Detecção Precoce de Câncer e Apoio à Organização de Rede, Instituto Nacional de Câncer (INCA). Médico pesquisador no Instituto Nacional de Cardiologia (INC).
2 - PhD. Pesquisadora adjunta e chefe substituta da Divisão de Detecção Precoce e Apoio à Organização de Rede, Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA)
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