O papel do tecido na era da biopsia líquida foi tema da apresentação do patologista Cristovam Scapulatempo (foto), gerente de inovações em Patologia e Patologia Molecular do Grupo DASA, durante a II Semana Brasileira da Oncologia. A discussão integrou a sessão educacional sobre ‘Atualização em Diagnóstico Molecular’. Confira a síntese do especialista.
Por Cristovam Scapulatempo
Toda a medicina moderna começou a ser moldada com base nas correlações entre sintomas e achados de necropsias no século VXIII por Giovanni Battista Morgagni, e com os achados microscópicos Rudolph Virchow começou a relacionar os achados celulares com as doenças, sendo considerado o pai da patologia moderna. A partir de então, novas entidades foram sendo descritas. Com a evolução da ciência, teve início a caracterização proteica das neoplasias. Posteriormente, com o surgimento das tecnologias genômicas, as neoplasias passaram a ser subclassificadas de acordo com os achados moleculares.
Os achados moleculares ainda não são tratáveis, ou seja, não são alvos, e nem sempre nos ajudam a redefinir o tratamento da maioria dos tumores. O diagnóstico histopatológico é o exame que contém todas as informações como tipo tumoral, fatores prognósticos e preditivos, e ainda hoje é o exame que possibilita a informação mais importante para orientação do tratamento da maioria dos tumores.
Sabemos ainda que durante a evolução tumoral mutações clonais e subclonais começam a acontecer e quando pensamos em tratar os pacientes com tumores avançados temos que ter em mente a necessidade de detectarmos a maioria dessas mutações que podem ter algum impacto no tratamento.
Dependendo do tipo do tumor a cada progressão seria ideal termos uma nova amostra tecidual, mas infelizmente nem sempre isso é possível, seja pela dificuldade de ter acesso a uma biópsia ou mesmo pelas condições clínicas dos pacientes.
Nesse contexto, a biópsia líquida é uma ferramenta fantástica que pode nos dar informações acerca da heterogeneidade tumoral utilizando apenas sangue periférico e em poucos dias pode ser informativa para uma tomada de decisão importante. O grande problema é que a detecção do DNA tumoral circulante (ctDNA) tem vários limitantes, sendo o mais importante a quantidade no plasma. Sabemos que tumores de diferentes órgãos têm capacidades diferentes de liberação de ctDNA, o que pode ser dependente do tipo histológico (carcinomas mucinosos liberam menos) e também do índice de proliferação (tumores altamente proliferativos têm mais células em apoptose, logo maior quantidade de ctDNA).
A maioria das biópsias líquidas disponíveis no mercado tem excelente especificidade, entretanto os limites de detecção ainda não sejam tão baixos. Isso é um problema porque quando falamos em tumores avançados, se fizermos um corte em 2% de frequência alélica (VAF), cerca de 16% dos cânceres colorretais, 26% dos cânceres de pâncreas e 45% dos cânceres de pulmão não seriam detectados. Assim, é preciso ter em mente que frente a um resultado positivo na biópsia líquida temos a certeza que detectamos algo, e quando negativo, temos que entender que pode ser que o tumor tenha alguma outra alteração genômica que devemos procurar no tecido.
Temos outros pontos importantes a discutir sobre a biópsia líquida. Atualmente, muito se discute sobre a biopsia líquida para detecção de mutações que nos permitiriam alterar o tratamento baseado em alterações em genes alvos. Entretanto, temos um novo tipo de biopsia líquida que tem a finalidade de monitoramento molecular da doença, que para ter uma altíssima sensibilidade (VAF de 0,01%) seleciona um pool de 16 mutações somáticas detectadas após a subtração das mutações germinativas encontradas através do exoma germinativo e somático (tumoral) do paciente. Esse tipo de exame permite em tempo real monitorarmos a doença molecular residual, seja após a cirurgia, quimioterapia ou imunoterapia. O teste detecta tumores de mama 16 meses antes da detecção da recidiva radiológica e já mostrou aumentar a sobrevida em pacientes com câncer colorretal quando se trata sistemicamente a recidiva molecular tumoral.
O segundo ponto que é preciso observar é que quanto maior a sensibilidade do teste utilizado como biópsia líquida, é possível detectar alterações que estão num clone pequeno de células que talvez não estaria presente na maioria das células tumorais, limitando assim a efetividade da terapia alvo escolhida. Entretanto, sabemos que quando há concordância dos achados do tecido e da biópsia líquida os resultados são muito melhores.
Por fim, quando pensamos em tratar pacientes com doença avançada, sem definição do sítio de origem e histologia tumoral, baseado em achados moleculares de uma biópsia líquida, podemos dar um tiro no escuro, muitas vezes sem sucesso, pois nem todos os marcadores são agnósticos e também porque múltiplos tumores de diferentes sítios podem ter a mesma mutação, e uma droga alvo dirigida a essa alteração molecular não funciona, necessariamente, nos diferentes tipos tumorais.
Em conclusão, o diagnóstico anatomopatológico ainda é fundamental para um adequado tratamento oncológico. O tecido tumoral submetido a painéis de NGS ainda é o material que contém mais informações e associação com resposta ao tratamento. Entretanto, a biopsia líquida é uma ferramenta excelente que quando utilizada para monitoramento molecular tem desempenho melhor que qualquer outro exame, e também é uma ferramenta muito útil quando utilizada para diagnosticar mecanismos de resistência ou na detecção de novas mutações de sensibilidade. Vale observar que ainda estamos aprendendo a utilizar, principalmente quando pensamos num cut off para decisão terapêutica para que tenhamos melhores respostas clínicas.