O carcinoma da nasofaringe (CNF) é uma doença distinta de todas as outras neoplasias da cabeça e do pescoço no que diz respeito a história natural, epidemiologia, patologia e resposta ao tratamento. A doença é tema de artigo exclusivo de Sérgio Gonçalves (foto), médico assistente do Serviço de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (ICESP).
O carcinoma da nasofaringe (CNF) é uma doença distinta de todas as outras neoplasias da cabeça e do pescoço no que diz respeito a história natural, epidemiologia, patologia e resposta ao tratamento. A doença é tema de artigo exclusivo de Sérgio Gonçalves (foto), médico assistente do Serviço de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (ICESP).
{jathumbnail off}Por Sérgio Gonçalves*
O carcinoma da nasofaringe (CNF) é uma doença distinta de todas as outras neoplasias da cabeça e do pescoço no que diz respeito a história natural, epidemiologia, patologia e resposta ao tratamento.
A incidência global é de 86000 casos/ano, com uma mortalidade estimada de 50000 casos/ano. É rara em países ocidentais. Apresenta características endêmicas em determinadas populações como aquelas do sudeste asiático, norte da África e algumas partes da bacia do Mediterrâneo. Nessas regiões, a incidência do CNF chega a 80 casos por 100.000 habitantes; números bem maiores que os registrados na população americana, com incidência aproximada de 0,2/100.000 habitantes. Há populações isoladas na Groelândia e Alaska, como os Inuitas, onde a incidência também é discrepante, chegando a 20/100.000 habitantes.
Vários fatores têm sido relacionados com esta distribuição demográfica do CNF, sugerindo uma forte associação entre a infecção pelo vírus Epstein-Barr (EBV), predisposição genética e fatores ambientais como a ingestão de alimentos conservados, além do tabagismo.
É uma doença que acomete geralmente indivíduos jovens, com predominância no sexo masculino. Essa incidência maior em adultos jovens e adolescentes é verificada em áreas endêmicas, diferentemente de populações ocidentais, onde a incidência aumenta com a idade.
Nas áreas endêmicas, o vírus Epstein-Barr (EBV) está fortemente associado ao desenvolvimento do CNF. A infecção pelo EBV pode ser encontrada em mais de 90% dos indivíduos com CNF nessas regiões.
A presença do vírus esta diretamente relacionada ao tipo de tumor, resposta ao tratamento e prognóstico. O tipo histológico mais comum é o carcinoma de células escamosas não queratinizante indiferenciado (tipo III segundo a classificação dos CNF da Organização Mundial da Saúde (OMS)). Os CNF do tipo I (queratinizante), tipo II (não queratinizante diferenciado) e o tipo basalóide, apresentam menor incidência, não apresentam relação com a infecção pelo EBV e, portanto, apresentam curso clinico de maior agressividade, pior resposta ao tratamento e pior prognóstico.
O estadiamento do CNF é realizado de acordo com a Union for International Cancer Control e American Joint Commitee on Cancer (UICC/AJCC), seguindo os critérios TNM, conforme tabela abaixo:
A localização mais frequente no aparecimento da doença primária é a fosseta de Rosemuller. A partir dai, a doença pode se expandir para toda a nasofaringe, infiltrando o espaço paranasofaríngeo, fáscia faringobasilar e base craniana média, envolvendo os nervos cranianos e artéria carótida interna. É incomum o diagnóstico de doença precoce, justamente pela dificuldade de acesso para avaliação da nasofaringe. Os casos detectados precocemente, tratam-se geralmente de achados incidentais durante exame de nasofibroscopia, em geral, solicitado por outras causas ou queixas.
A apresentação clínica descrita como tríade clássica, compreendida por tumor cervical, obstrução nasal com epistaxe e otite média serosa é infrequente e ocorre numa pequena parcela de pacientes com CNF. A apresentação mais comum do CNF é o aparecimento de um tumor cervical, devido a presença de metástase linfonodal cervical, além de alterações neurológicas focais ou cefaléia de início recente, relacionada ao acometimento de algum dos nervos cranianos possivelmente envolvidos. Portanto, é comum a apresentação inicial tratar-se de doença em estadio avançado.
TRATAMENTO
Podemos considerar doença avançada os estadios III e IV. A base do tratamento para os CNF avançados é a quimiorradioterapia concomitante. A cirurgia não é utilizada como primeira-linha no tratamento do tumor primário pela profundidade anatômica da nasofaringe e sua relação com importantes estruturas neurovasculares. Além disso, o CNF tem se mostrado radiosensível e quimiosensível, reservando o tratamento cirúrgico para os casos de falha terapêutica, tanto para o tumor primário, quanto para as metástases cervicais (cirurgia de resgate).
A radioterapia apresentou uma evolução significativa nos últimos anos, trazendo novas possibilidades com o uso da radioterapia de intensidade modulada (IMRT), permitindo a aplicação de altas doses no tumor primário e reduzindo drasticamente a toxicidade associada a radiação. No entanto, no caso de doença avançada não metastática (estádios III e IV), a radioterapia isolada não mostrou resultados muito animadores, onde os índices de sobrevida global em 5 anos ficam em torno de 34 a 52%. A radioterapia isolada tem se mostrado eficiente somente no tratamento do CNF precoce (estadio I).
Vários grupos têm conduzido estudos clínicos (fase III) específicos para o tratamento do CNF, comparando a associação quimiorradioterapia com a radioterapia isolada. Estudos multicêntricos conduzindo modalidades terapêuticas combinadas têm sido realizados em áreas endêmicas na avaliação do uso de múltiplos agentes quimioterápicos seguidos de radioterapia.
Um estudo de referência para o tratamento do CNF, foi o publicado por Al Sarraf em 1998, participante do Intergroup 0099, que comparou altas dose de cisplatina (100mg/m2 d1, 22 e 43) concomitante com a radioterapia (70Gy, fracionados em 35 a 39 doses), seguido de três ciclos (a cada quatro semanas) de cisplatina (80mg/m2) + 5-fluoracil (5-FU) (1g/m2/dia por 4 dias), com o tratamento radioterápico isoladamente, até então, utilizado como tratamento de escolha. Após um seguimento mínimo de 5 anos, verificou-se melhora na sobrevida global (67% vs 37%, p<0,001) e sobrevida livre de doença (58% vs 29%, p<0,001). Seguiram-se novos estudos com populações de áreas endêmicas confirmando os resultados obtidos com a terapia combinada. Estes resultados levaram a uma mudança de conduta no tratamento do CNF.
Duas meta-análises confirmaram o benefício da quimiorradioterapia concomitante. Foram analisados oito estudos clínicos randomizados, com dados de 1700 pacientes, mostrando que a adição da quimioterapia ao tratamento radioterápico no CNF confere uma melhora na sobrevida global de 6% em 5 anos, com uma taxa de risco de morte de 0,82. Somente o papel da quimioterapia adjuvante permaneceu controverso, pois não mostraram resultados estatisticamente significantes nos desfechos analisados.
Ainda assim, a quimiorradioterapia com altas doses de cisplatina concomitante a radioterapia, seguida de adjuvância com cisplatina + 5-FU nos indivíduos com CNF em estadios avançados, com doença locorregional, não metastático (estádios III e IV) é vista pela National Compreensive Cancer Center (NCCN) em seu guideline, como a melhor forma de tratamento para esse grupo de pacientes.
Vários estudos analisaram a eficiência da oxaliplatina e da carboplatina em comparação a cisplatina. Foi demonstrado resultado semelhante no controle da doença, com superioridade da carboplatina quanto a toxicidade.
O benefício da introdução da quimioterapia concomitante a radioterapia parece estar ligado a: 1) diminuição do risco de desenvolvimento de doença metastática a distância pela eliminação de micrometástases; 2) melhora o efeito da radiação através de uma ação sinérgica e sensibilização dos tecidos (radiosensibilização); 3) facilitação da ação da radioterapia no sítio primário, através da redução e controle do volume tumoral.
Nesta mesma linha de raciocínio, alguns grupos têm demonstrado interesse na avaliação da resposta na quimioterapia de indução, com potencial benefício na redução do volume tumoral e erradicação das micrometástases antes do início da quimiorradioterapia concomitantes.
Estudos mais recentes, fase II, analisando 33 pacientes tratados com 3 ciclos de indução com TPF (docetaxel, cisplatina e 5-FU), seguidos de cisplatina + radioterapia, obtiveram resposta completa em 15,2% dos pacientes e 81,8% de resposta parcial. A sobrevida global em 3 anos foi de 86,1%. No entanto, a toxicidade grave (graus 3-4), associada a neoadjuvância, mostrou-se elevada.
Outros estudos multicêntricos, randomizados, incluindo o International Nasopharingeal Carcinoma Study Group, analisaram a utilização da quimioterapia de indução com cisplatina, bleomicina, epirubicina ou 5-FU. Não observaram significante benefício na sobrevida livre de doença (48%-55% vs 42 - 43%) ou sobrevida global (60-78% vs 42-71%) dos pacientes com CNF estadios III e IV, porém com boa tolerância.
Não há evidência cientifica suficiente que suporte outros tipos de tratamento para as diferentes classificações histológicas do CNF, a despeito das diferenças prognósticas.
TERAPIA-ALVO
Uma parcela significativa dos tumores malignos da cabeça e do pescoço, incluindo o CNF, expressam EGFR, tornando-se foco de pesquisa no uso da terapia-alvo. Existe ainda a hiper-expressão de vários outros receptores de fatores de crescimento como: VEGF, c-KIT, c-erbB2 (HER2) etc... A hiper-expressão de EGFR, presente em aproximadamente 90% nos CNF do tipo III não queratinizante, é um fator independente de pior prognóstico, relacionado a recidiva locorregional da doença.
Alguns estudos preliminares realizados em pacientes com CNF recidivado e/ou metastático mostraram resultados pouco animadores com o uso de terapia-alvo. Quando múltiplos agentes são utilizados (quimioterápicos e inibidores moleculares seletivos), a média de ganho na sobrevida não ultrapassa 8-12 meses, demonstrando um benefício ainda questionável.
O uso do Cetuximab (inibidor do domínio extracelular do EGFR) em associação a quimiorradioterapia convencional (baseada em platina) foi estudado em 30 pacientes com doença em estadios III e IV. A sobrevida livre de progressão em 2 anos foi de 86,5%. No entanto, as complicações graves relacionadas à associação terapêutica foram proibitivas (87%). Outro estudo utilizando o Getifinib, também não conseguiu obter nenhuma resposta animadora nos desfechos analisados.
Outros estudos fase III, multicêntricos, ainda em andamento, avaliam a adição de Bevacizumab e Panitumumab ao tratamento quimiorradioterápico “standard” em pacientes com CNF estadios IIb a IVb, sem respostas muito animadoras.
SEGUIMENTO
Os pacientes tratados do CNF devem ser acompanhados com exames endoscópicos seriados (nasofibroscopia), tomografia computadorizada e/ou ressonância magnética do crânio e da face, tomografia ou ultrassonografia do pescoço, tomografia do tórax, além do PET, em busca de possível recidiva local, regional ou metástases a distância.
O controle pós-tratamento deve ser iniciado 3 meses após seu término. Após a realização da radioterapia, por vezes, é difícil distinguir através de exames de imagem se há persistência da doença ou trata-se somente dos efeitos decorrentes da radiação. Nestas condições, é imperativo a realização de biópsia para a confirmação da presença de CNF em atividade.
A avaliação da dosagem sérica do DNA do vírus EBV através de PCR (protein chain reaction) tem sido utilizado como biomarcador para monitorizar a resposta terapêutica e/ou recorrência da doença. O DNA viral sérico está elevado na maioria dos pacientes com CNF. Após o tratamento, 92% tem seus níveis de DNA séricos indetectáveis e, naqueles que persistem com resposta completa ao tratamento, a dosagem torna-se indetectável em 100% dos pacientes.
No entanto, não há consenso ainda nos valores de “cut-off” para os casos suspeitos de recidiva ou metástase baseados no método. Valores maiores que 500 cópias/ml têm sido utilizados como referência. Anticorpos específicos contra o EBV (EBNA-1) também podem ser utilizados com esta finalidade, porém é um método extremamente caro para sua utilização de rotina.
TRATAMENTO DA RECIDIVA/PERSISTÊNCIA
As recorrências cervicais são tratadas através de esvaziamento cervical incluindo os níveis cervicais acometidos pela doença, ou em casos de metástases volumosas, múltiplas e/ou com extravasamento extracapsular, deve ser realizado o esvaziamento cervical radical.
Quando ocorre a recidiva no sítio primário, a nasofaringectomia de resgate pode ser factível. A extensão da doença junto a carótida interna e acometimento de estruturas intra-cranianas próximas ao seio cavernoso, são limitações para o resgate.
Em uma análise retrospectiva de 172 casos resgatados com nasofaringectomia na Universidade de Hong Kong, com um seguimento médio de 38,8 meses, os autores obtiveram ótimos resultados, verificando a recorrência local e a distância em um único paciente. Não relataram nenhum óbito peri-operatório e nenhum caso de rotura de carótida ou osteorradionecrose da base do crânio.
A re-irradiação pode ser uma alternativa de tratamento para o CNF recorrente. No entanto, altas doses de radiação estão associadas a maior frequência de complicações, que podem incluir: osteorradionecrose, necrose do lobo temporal, disfunção endócrina, rotura de carótida, entre outras.
O controle locorregional da doença recidivada, em algumas séries, fica em torno de 40 a 72%, com sobrevida global entre 30 e 54%. A sobrevida média é pobre nos casos de recorrência da doença, variando entre 7,2 e 22 meses.
CONCLUSÃO
O CNF tem características diferenciadas em relação a todos os outros tumores de cabeça e pescoço. Existe uma forte associação com a infecção pelo EBV e o aparecimento do CNF. Isso parece ter importância no controle a doença, no que diz respeito a resposta terapêutica e recidiva.
Para os estadios avançados (II – IVb), a quimioterapia associada a radioterapia tem mostrado melhores resultados no controle da doença. Mesmo assim, a sobrevida global em 5 anos, se mantém entre 58 e 84%. A cirurgia é reservada para o resgate de pacientes que apresentam recidiva ou persistência da doença cervical ou no sítio primário.
Apesar da terapia-alvo ter seu papel no tratamento dos tumores de cabeça e pescoço, não se mostrou muito eficiente no controle da doença avançada no CNF. Talvez tenhamos melhores resultados com o desenvolvimento de novas drogas ou através da imunoterapia dirigida ao controle do EBV.
*Autor: Sérgio Gonçalves, Médico Assistente do Serviço de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (ICESP)
REFERÊNCIAS
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