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Daichii Sankyo

 

Uma visão da leucemia promielocítica aguda

Leucemia_promielocitica_aguda.jpgA leucemia promielocítica aguda (LPA), um subtipo único de leucemia mielóide aguda (LMA), acomete indivíduos de qualquer faixa etária, com predomínio nos adultos jovens, sem diferença de incidência entre os sexos. A LPA, doença com características clínicas, morfológicas e biológicas peculiares, é tema do artigo de Luísa Correa de Araújo Koury, médica hematologista e aluna de doutorado do Programa de Oncologia Clínica, Células Tronco e Terapia Celular da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP); e Eduardo M. Rego, professor titular e coordenador do International Consortium on Acute Leukemias (ICAL); Divisão de Hematologia e Oncologia Clínica, Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP.

Leucemia_promielocitica_aguda.jpgA leucemia promielocítica aguda (LPA), um subtipo único de leucemia mielóide aguda (LMA), acomete indivíduos de qualquer faixa etária, com predomínio nos adultos jovens, sem diferença de incidência entre os sexos. A LPA, doença com características clínicas, morfológicas e biológicas peculiares, é tema do artigo de Luísa Correa de Araújo Koury, médica hematologista e aluna de doutorado do Programa de Oncologia Clínica, Células Tronco e Terapia Celular da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP); e Eduardo M. Rego, professor titular e coordenador do International Consortium on Acute Leukemias (ICAL); Divisão de Hematologia e Oncologia Clínica, Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP.

*Luísa Correa de Araújo Koury e Eduardo M. Rego
 
A leucemia promielocítica aguda (LPA) é um subtipo único de leucemia mielóide aguda (LMA) descrito pela primeira vez em 1957¹. No Reino Unido, países escandinavos e nos Estados Unidos a LPA corresponde a5-8% das LMA2, embora nos países latino-americanos estudos baseados em registros hospitalares sugiram que a LPA corresponda à 20-25% dos casos de LMA3-5. Acomete indivíduos de qualquer faixa etária, com predomínio nos adultos jovens2. Não há diferença de incidência entre os sexos.
 
Esta entidade apresenta características clínicas, morfológicas e biológicas peculiares e é atualmente classificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) entre as LMA com anormalidades citogenéticas recorrentes: Leucemia Promielocítica Aguda com translocação (15;17)(q22; q12); PML-RARA2.
 
A translocação entre os cromossomos 15 e 17 dá origem ao gene de fusão PML-RARA que codifica para a proteína híbrida de mesmo nome. O gene de fusão resulta da quebra, deslocamento e fusão do gene do receptor alfa do Ácido Retinóico (RARA) e do gene da Leucemia Promielocítica Aguda (do inglês Promyelocytic Leukemia, PML). O primeiro codifica para um membro da família dos receptores nucleares, e o segundo para uma proteína reguladora da apoptose, senescência, resposta à infecção viral e ao estresse oxidativo6.
 
Em condições fisiológicas o RARAquando ligado ao ácido retinóico, promove a diferenciação mielóide. Como a proteína PML-RARA é capaz de formar dímeros com o parceiro obrigatório do RARA, o RXR, há uma inibição competitiva da transcrição de genes envolvidos na maturação6.O PML-RARA também desorganiza os corpos nucleares de PML que estão associados ao P53. Aumento da auto-renovação é observado na perda do PML ou desorganização dos corpos nucleares de PML, o que pode refletir a desregulação da sinalização do P536.
 
A introdução do ATRA (ácido all trans-retinóico) em 1985 iniciou uma nova era no tratamento da LPA7 e representa um marco no tratamento oncológico por ser o primeiro exemplo de doença que pode ser curada com o uso de terapia alvo. O ATRA em concentrações farmacológicas é capaz de ativar a transcrição e induzir a diferenciação dos blastos da LPA, além de induzir a degradação do PML-RARA mediada pelo proteassoma6. A degradação do PML-RARA permite a reconstituição dos corpos de PML, desta forma modulando a auto-renovação.
 
Inicialmente foi estudado o uso do ATRA em monoterapia, um estudo do North American Intergroup revelou taxas de Resposta Completa (RC) nos pacientes tratados com ATRA como agente único de 72%, semelhantes às encontradas com doses convencionais de citarabina e daunorrubicina8, mas com frequentes recaídas nos pacientes tratados apenas com ATRA. Estes achados estimularam novos estudos utilizando a associação do ATRA com quimioterapia, que estabeleceram como tratamento padrão para LPA recém diagnosticada a combinação de ATRA com antraciclina9. Não há dados definitivos que provem a superioridade de uma antraciclina em relação a outra.
 
Esta combinação mostrou alta eficácia anti-leucêmica, levando a taxas de RC de 90-95%10. Estudos recentes do grupo espanhol "Programa Español de Tratamientos em Hematología" (PETHEMA) sugerem que em casos geneticamente confirmados de LPA, virtualmente, não ocorre resistência primária à indução de remissão usando Idarrubicina 12mg/m²/dia nos dias 2, 4, 6 e 8 e ATRA 45mg/m²/dia dividido em duas tomadas até a remissão morfológica. A taxa de RC morfológica com este esquema foi de 92,5%, com todos os casos de falha a indução resultantes de morte durante a indução por causas não relacionadas a progressão da doença11. É provável que os casos reportados previamente em outros estudos como apresentando resistência a terapia de indução representem pacientes cuja resposta ao tratamento foi avaliada cedo demais ou casos em que o diagnóstico de LPA não estava correto, sem a devida confirmação do rearranjo PML-RARA10-12. É consenso atualmente que a primeira avaliação da resposta deve ocorrer após um período mínimo de 30 dias e, em casos de dúvidas na avaliação da resposta, manter o ATRA e reavaliar a medula óssea (MO) em 2-3 semanas12. É necessária apenas a obtenção de resposta hematológica completa (≤ 5% de blastos na MO), independente do status do PML-RARA.
 
Para reduzir as taxas de recaída e aumentar as taxas de remissão molecular, a maioria dos protocolos prevê a realização de dois ou três ciclos de consolidação. Comparações históricas de estudos dos grupos PETHEMA e "Gruppo Italiano per le Malattie Ematologiche dell' Adulto" (GIMEMA) revelam menores taxas de recaída (8,7% x 20,1%) e maiores taxas de sobrevida livre de doença (SLD) e sobrevida global (SG) em esquemas de consolidação com uso concomitante de quimioterapia e ATRA9.

Com o objetivo de melhorar os resultados obtidos, foram desenhados protocolos baseados em uma estratégia adaptada ao risco de recaída, definido por um estudo conjunto entre os grupos PETHEMA e GIMEMA (tabela 1)13,de modo a intensificar a terapia nos pacientes de alto risco e minimizar a toxicidade nos de baixo risco. A maioria dos estudos sugere benefício no uso da citarabina nos pacientes de alto risco (> 10.000 glóbulos brancos/µL), possivelmente devido ao efeito sinérgico da combinação de ATRA e citarabina11 e 14. No estudo do grupo PETHEMA LPA 2005, a incidência acumulada de recaída em 3 anos nessa população quando comparada com controles histórico (LPA99) foi significativamente menor (11% x 26%, p= 0,03), mantendo um perfil de toxicidade tolerável11.
 
Tabela 1. Estratificação de risco ao diagnóstico de Leucemia Promielocítica Aguda

Grupo de Risco Leucócitos (/µL) ao diagnóstico Plaquetas (/µL) ao diagnóstico
Baixo ≤ 10.000 > 40.000
Intermediário ≤ 10.000 < 40.000
Alto >10.000 Indiferente
 

Com a estratégia de consolidação adaptada ao risco, tem sido possível a obtenção de remissão molecular (PCR negativo para PML-RARAna MO) em cerca de 99% dos pacientes ao final da consolidação11e 14. Este é considerado o marco mais relevante da terapia da LPA12. Pacientes com persistência ou reaparecimento do PML-RARA (confirmado em 2 exames consecutivos, com intervalo de 15 dias) irão invariavelmente recair se não forem submetidos a terapia de resgate10 e 12.
 
Terapia de manutenção prolongada é parte da maioria dos protocolos de tratamento da LPA atuais, embora sua importância permaneça controversa9 e 11. Em 2012, o grupo de pesquisadores usando a base e metodologia Cochrane comparou os desfechos de pacientes com LPA que após a indução e consolidação receberam tratamento demanutenção ou foram acompanhados clinicamente(observação). O tipo de manutenção (monoterapia com ATRA, ou ATRA combinado a quimioterapia) também foi avaliado15. Não foi evidenciada melhora da SG em nenhum grupo, mas a SLD foi significativamente prolongada com o uso de qualquer manutenção em comparação com observação (hazardratio 0,59; intervalo de confiança de 95% 0,48-0,74)15. Não foi observada diferença entre os regimes com ATRA e sem ATRA, mas esta revisão contém estudos com diferentes esquemas de indução e consolidação o que limita a aplicabilidade destes achados.
 
No início dos anos 2000, um novo agente foi introduzido no armamentário do tratamento da LPA, o trióxido de arsênico (ATO). Diferentes estudos demonstram taxas de cura da LPA com o uso do ATO como agente único de cerca de 70%; sendo o ATO considerado mais potente que o ATRA para a erradicação da LPA, embora sua capacidade de induzir a diferenciação dos blastos da LPA seja apenas modesta6. Diversos mecanismos são propostos para explicar a ação do ATO, a indução da diferenciação pelo arsênico não é mediada pela ativação da transcrição do RARAou do PML-RARA, mas a degradação do PML-RARAreverte todas as alterações induzidas pela t(15;17)6.
 
O alvo do ATO é a porção PMLda proteína de fusão PML-RARA. Seja se ligando diretamente ao PML ou através de suas propriedades oxidativas induzindo a formação de pontes dissulfeto, o tratamento com ATO causa a multimerização do PML-RARAe consequente sumulaçãoda proteína que a seguir será degradada pelo proteassoma6.

As descobertas em relação à via responsável pela ação do ATO aliadas a estudos com outros derivados do ácido retinóico que não degradam o PML-RARAmas geram a diferenciação terminal do blasto sem alterar sua capacidade de auto-renovação, indicam que o evento mais importante no tratamento da LPA e que leva a cura é a degradação do PML-RARA. Assim, a combinação de ATRA e ATO mostrou sinergismo no tratamento da LPA e diversos estudos revelaram resultados favoráveis.
 
Em 2013, Lo-Coco et al. publicaram os resultados do primeiro estudo fase 3 comparando ATRA + Idarrubicina com ATRA + ATO nos pacientes de risco intermediário e baixo. O desenho do estudo foi do tipo "não inferioridade". A sobrevida livre de eventos (SLE) em 2 anos foi de 97% no grupo ATRA-ATO versus 86% no grupo ATRA-QT (p< 0,001 para não inferioridade e p= 0,02 para superioridade); a SG em 2 anos de 99% para ATRA-ATO e 91% para ATRA-QT (p=0,02)16. A incidência acumulada de recaída (IAR) em 2 anos foi de 1% no grupo ATRA-ATO e 6% no grupo ATRA-QT, p=0,24 (uma atualização do estudo foi apresentada no Congresso de 2014 da Sociedade Americana de Hematologia na qualo valor da IAR do grupo ATRA-ATO permaneceu em 1% e no grupo ATRA-ATO subiu para 9,4%, p = 0,005)17. A toxicidade diferiu entre os dois braços, com maior toxicidade hematológica no grupo ATRA-QT e mais elevada hepatotoxicidade e prolongação do intervalo QT no grupo ATRA-ATO16.
 
Após este estudo, a combinação ATRA-ATO vem emergindo como a nova terapiapadrãopara pacientes de risco intermediário e baixo, além de ser uma terapia atrativa para aqueles pacientes com severas comorbidades e não considerados candidatos para a terapia convencional9. Neste grupo encontram-se os pacientes idosos, nos quais já foi evidenciado impacto prognóstico desfavorável com taxa de mortalidade em RC de 19% nos pacientes acima de 70 anos e <1% nos menores de 60 anos10.
 
A LPA refratária ou recaída vem tornando-se uma condição rara com o advento dos novos protocolos de tratamento. As recaídas ocorrem em 5-20% dos pacientes, sendo <3% a incidência de recaída entre os casos de baixo risco, e as recaídas em sítios extra-medulares acometendo 3-5% dos pacientes.
 
Antes do advento do ATO, a terapia de resgate consistia em re-indução com ATRA e quimioterapia, seguida de uma consolidação com nova quimioterapia e transplante de medula óssea(TMO). Estes regimes possuíam altas taxas de segunda RC (80-90%)10.
 
Posteriormente, vários grupos confirmaram a eficácia do ATO no contexto da LPA recaída. Estudos multicêntricos mostraram que 2 ciclos de ATO em pacientes recaídos foi capaz de induzir remissão molecular em cerca de 80% dos pacientes.Devido a menor toxicidade hematológica aliada a eficácia em obter nova resposta molecular, o ATO é considerado a mais adequada ponte para o transplante10.
 
Algumas evidencias sugerem que o TMO autólogo melhora o desfecho dos pacientes que alcançam segunda remissão, sendo o TMO alogênico recomendado para aqueles que não conseguem atingir a remissão ou apresentam uma nova recaída.
 
A evolução do tratamento não foi a única responsável pela melhora dos desfechos dos pacientes, havendo também nas últimas décadas uma evolução nas medidas de suporte. A coagulopatia sempre representou a principal causa de morte durante a indução neste grupo de pacientes, com praticamente 60% apresentando eventos hemorrágicos ao diagnóstico18. Por este motivo todos os consensos atuais ressaltam a importância da adoção imediata de medidas de suporte mediante a suspeita do diagnóstico de Leucemia Promielocítica Aguda (não aguardando sua confirmação).
Estas medidas envolvem o tratamento agressivo dos distúrbios de coagulação através da transfusão de plaquetas, crioprecipitado e plasma fresco congelado, objetivando-se manter os níveis de plaqueta acima de 30.000-50.000/µL e a concentração de fibrinogênio acima de 100-150mg/dL12.
 
O início precoce da terapia com o ATRA, sem aguardar a confirmação molecular, é outro ponto chave no tratamento da LPA, pois ele melhora rapidamente os sintomas hemorrágicos e os parâmetros biológicos da coagulopatia19, além de ser improvável a ocorrência de efeitos deletérios em caso do diagnóstico de LPA estar errado12.
 
A Síndrome de Diferenciação (SD), originalmente descrita como Síndrome ATRA, é outra séria e relativamente comum complicação que ocorre nos portadores de LPA em terapia com ATRA ou ATO. Caracterizada por febre inexplicada, ganho de peso, edema periférico, dispneia com infiltrado pulmonar intersticial, derrame pleural/pericárdico, hipotensão e falência renal aguda. Sua provável origem é mediada pela liberação de citocinas pelas células mielóides em diferenciação. Apesar da falta de evidências suportando a profilaxia para SD, diversos protocolos adotam uma estratégia preventiva com corticosteroides (especialmente para pacientes com contagem de leucócitos acima de 5.000 – 10.000/µL). Seu diagnóstico deve ser suspeito em pacientes com qualquer dos sinais e sintomas citados acima e tratamento preemptivo com dexametasona deve ser iniciado imediatamente. Descontinuação do ATRA ou ATO é recomendada apenas em pacientes com grave sintomatologia, como severa disfunção renal ou pulmonar20.
 
A leucemia promielocítica aguda transformou-se da mais fatal a mais curável leucemia em adultos, mas alguns desafios ainda persistem, entre eles a redução da mortalidade precoce por hemorragia, síndrome da diferenciação e infecção.
 
Nos países subdesenvolvidos os desafios ainda são maiores, mas a criação do International Consortium on APL (ICAPL) vem aprimorando o cuidado destes pacientes no Brasil. Antes de sua implantação foi observada, em um estudo retrospectivo, uma taxa de mortalidade de 32% durante a indução e 10% durante a consolidação; com uma SG de 50%21.
 
Após o ICAPL a taxa de mortalidade durante indução caiu para 15% e a SG em dois anos foi para 80%22, mostrando que a criação de um protocolo de diagnóstico, medidas de suporte e tratamento adaptado a realidade local junto à educação medica pode levar um país em desenvolvimento a atingir resultados semelhantes aqueles de países desenvolvidos.
 
O entendimento da leucemogênese e das terapias alvo apresentou avanços sem precedentes a partir do modelo da Leucemia Promielocítica Aguda, espera-se que este conhecimento gere progressos para o tratamento dos demais subtipos de Leucemias Mielóides Agudas.
 
*Autores: Luísa Correa de Araújo Koury é médica hematologista e aluna de doutorado do Programa de Oncologia Clínica, Células Tronco e Terapia Celular;
 
Eduardo M. Rego é professor titular e coordenador do International Consortium on Acute Leukemias (ICAL); Divisão de Hematologia e Oncologia Clínica, Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. 
 
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